SÉRIES | ANÁLISE

Análise | Cangaço Novo

Série brasileira é original, visceral e contagiante

Geraldo Campos 25 de ago. de 2023Atualizado em 25 de ago. de 2023

O Brasil é um país com extensão continental que abriga diversas histórias, particularidades, lendas e mitos. Apesar disso, toda essa riqueza carece de publicidade, pois, por mais que hajam produções audiovisuais a respeito, faltam janelas de exibição. Felizmente, Cangaço Novo é uma série que consegue juntar ambas as qualidades. Ao mesmo tempo que explora o Brasil profundo, no interior do Ceará, obteve uma ótima janela de exibição pela Amazon Prime Video, basta agora o interesse do próprio público em celebrar a cultura brasileira. E logo de antemão, vale dizer que essa é uma das melhores séries do ano.

Diferente de Cidade Invisível, que explora elementos tipicamente nacionais, mas se entrega a uma narrativa hollywoodiana, a série de Aly Muritiba e Fábio Mendonça é original em si. Começa pé no chão, com uma apresentação muito contundente de seus personagens e motivações, na qual o destaque é para Dinorah (Alice Carvalho), que encanta em todas as escalas possíveis. Aos poucos e com muita naturalidade, a história vai ficando cada vez mais densa e impactante. Quando se vê, o espectador se importante com todos em cena.

No roteiro, acompanhamos Ubaldo (Allan Souza Lima), que descobre ter uma herança de terras no Ceará, e vai até o local manifestar o dinheiro das terras para financiar os custos hospitalares de seu pai adotivo, que está internado em São Paulo. Chegando lá, porém, ele descobre ter duas irmãs (Dinhorah e Dilvânia; interpretada por Thainá Duarte), e ser descendente de uma linhagem de cangaceiros. 

Um dos maiores méritos de roteiro, no entanto, é não cair na superficialidade de arquétipos, repetidamente utilizados em Hollywood. No caso de Cangaço Novo, não há heróis ou vilões. A linha que, eventualmente, separaria os dois, é extremamente tênue, difícil de ser identificada com clareza, e mesmo os protagonistas podem caminhar pelos dois lados dependendo das circunstância. São todos demasiadamente humanos.

A morte é algo que paira sobre a cabeça de todos os personagens e, conforme o espectador ganha a simpatia desses “demasiadamente humanos”, os assaltos a bancos e troca de tiros são acompanhados da angustia de, eventualmente, não poder mais ver um membro querido daquele grupo. 

Obviamente que, nesse sentido, a séria discute temas atuais, não só do Brasil, mas do mundo. Nos últimos episódios, elementos da política se mesclam com o cotidiano dos cangaceiros que se dá por meio de uma campanha eleitoral para a prefeitura da cidade, em uma dicotomia com prefeito, que tenta a reeleição, e a oposição, apoiada pelo cangaço. Vale lembrar que aqui o cangaço não é nem bom nem ruim, ele é resultado e agente influenciador de uma realidade complexa, em que forças disputam pelo poder e pela sobrevivência. 

Assim, nem governo nem oposição é santo ou demônio, é uma disputa pelo menos pior. Os ídolos são todos desnudos, e os únicos a escaparem da hipocrisia, de certa forma, é o cangaço, que assume a escolha de serem quem são. 

Nesse ponto, a série trabalha muito bem a violência como um elemento de natureza cíclica - fulano estupra a filha de ciclano. Ciclano vai lá e mata o fulano por vingança. Os amigos de fulano descobrem que foi ciclano quem matou o fulano. Eles vão lá e matam toda a família do ciclano. Até não restar ninguém. Basicamente, essa é uma das fórmulas que faz o roteiro girar. A violência e a repressão, em todas as suas manifestação, são características do meio em que esses personagens estão inseridos, que faz parte de um sistema tão complexo que é difícil de ser quebrado. 

Como sustentação dessa atmosfera que veste a série, os atores transbordam vida em suas interpretação. Está tudo ali é genuíno, o elenco é aquele mundo, eles se transformam na dramaturgia da série. Na fala, nas brincadeiras, na dor, no luto. É visceral e contagiante. 

Por sua vez, o grande destaque desse elenco é sem sombra de dúvida Alice Carvalho, que dá vida a Dinorah, uma das irmãs de Ubaldo. Ela simplesmente rouba as cenas, e possui uma das passagens mais incríveis da série quando, em uma alucinação, conversa com cangaceiros já falecidos, inclusive Lampião e Maria Bonita

Sobre tiro, porrada e bomba, é muito bem equilibrado e as cenas são realmente excelentes. Para amantes de filmes de faroeste, inclusive, com pessoas entre rochas atirando um nos outros, o último episódio possui um desses conflitos nostálgicos, logicamente que guardadas as proporções. 

Vale ressaltar ainda o show à parte que é a trilha sonora, que exalta o melhor da cultura brasileira e vai ao encontro das circunstâncias de cada momento da série e aquilo que ela quer transmitir, com nome como Jards Macalé, Erasmo Carlos, Maria Bethânia, e assim por diante.

Cangaço Novo assume as contradições humanas, se livra dos arquétipos convencionais e mergulha na complexidade de personagens demasiadamente humanos. Explorando o Brasil profundo e seus dilemas, a série transcende a superficialidade das cenas de ação e discursa sobre problemáticas nacionais e contemporâneas, partindo do cangaço que, por sua vez, é um resultado social ao mesmo tempo que se torna um agente da sociedade. Tal qual esse paradoxo, assim é a série de Aly Muritiba e Fabio Mendonça, que possui muito a dizer ao mundo.

Cangaço Novo | Primeira Temporada

Ano::2023

Distribuição::Prime Video

Gênero::Drama / Ação

Direção::Aly Muritiba e Fábio Mendonça

Episódios::8

País de Origem::Brasil

Nota do avaliador:

Excelente